3 de mai. de 2010

Que é o Dinheiro?

Certo dia, quando nós Sete e o Mestre estávamos voltando do Ninho da Águia para a Arca, vimos Shamadam ao portão agitando um documento que tinha na mão, diante de um homem que se achava prostrado a seus pés. Dizia Shamadam, bastante zangado: "O teu delito esgota a minha paciência, não posso mais ser tolerante. Ou pagas já ou irás apodrecer na prisão!"
Reconhecemos o homem como sendo Rustidion, um dos arrendatários da Arca, que se achava em débito de soma de dinheiro para com esta. Esfarrapado e envelhecido, suplicava ao Superior que lhe desse prazo para pagar os juros, dizendo que numa só semana havia perdido o único filho e a única vaca que possuía, em conseqüência do quê, sua velha esposa havia sido acometida de paralisia. O coração de Shamadam, porém, não se enternecia.
O Mestre foi ao encontro de Rustidion e, tomando-o delicadamente pelo braço, disse:
Mirdad:
Levanta-te, meu Rustidion. Tu és também imagem de Deus, e a imagem de Deus não se deve curvar diante de sombra alguma. (E voltando-se para Shamadam):
Mostra-me o título da dívida.
Naronda: Shamadam, que havia um momento estava furioso, para espanto de todos se tornou mais manso que um cordeiro e humildemente passou ao Mestre o papel que tinha na mão. O Mestre examinou com todo o cuidado o documento, enquanto Shamadam o olhava calado, como se estivesse sob a ação de um encantamento.
Mirdad:
Não era onzenário o fundador desta Arca. Por acaso ele te legou dinheiro que devesse emprestar com usura, ou terras para alugar com preço de usura? Deixou-te ele por herança o suor e o sangue de teu irmão, ordenando-te que lançasses à prisão aqueles cujo suor tivesses recolhido até não haver mais e cujo sangue tivesses sugado até a última gota?
Uma Arca, um altar e uma luz foi o que ele te deixou em herança - nada mais. Uma arca, que é o seu corpo vivo; um altar, que é o seu destemido coração; uma luz que é a sua fé ardente. Estas coisas ele te ordenou que as conservasses intactas e puras num mundo que baila ao som das flautas da Morte e se espoja no lamaçal da iniqüidade, devido à sua falta de fé.
Para que os cuidados do corpo não vos distraíssem o espírito vos foi permitido viver da caridade dos fiéis. E nunca, desde que a Arca foi lançada, houve falta de caridade.
Mas ai! Esta caridade tu agora a transformaste em maldição, para ti e para todos os caridosos, pois com as suas doações, tu subjugas os doadores. Tu os enforcas com as suas cordas que eles fiaram para ti. Tu os desnudas das roupas que teceram para ti. Tu os matas a fome pelo pão que para ti amassaram. Tu constróis prisões para ele com as pedras que eles cortaram e aparelharam. Para eles tu fazes jugos e esquifes com a madeira que eles cortaram para te aqueceres. Empresta-lhes com usura o seu próprio suor e o seu próprio sangue, pois é que o dinheiro senão suor e sangue do homem, cunhado em moedas com as quais se acorrenta o próprio homem? Que é a riqueza senão o suor e o sangue do homem, armazenado por aqueles que suam e sangram o mínimo para moer as costas daqueles que suam e sangram o máximo.
Malditos! Mais uma vez malditos sejam aqueles que queimam suas mentes e seus corações e assassinam seus dias e suas noites para acumular riquezas, pois não sabem o que estão acumulando!
O suor das prostitutas e dos ladrões; o suor dos tuberculosos, dos leprosos e dos paralíticos; o suor dos cegos, dos coxos e dos aleijados; o suor do arador e dos que faz a colheita - de todos estes e de muitos mais - eis o que armazena o acumulador de riquezas!
O sangue do órfão e do velhaco; do déspota e do mártir; do perverso e do justo; do executor e do que é executado; o sangue dos exploradores e trapaceiros e daqueles que são explorados e ludibriados - o sangue de todos estes e de muitos mais, eis o que armazenam os que acumulam riquezas!



Malditos! Sempre malditos sejam aqueles cuja riqueza e cujo capital nos negócios é o suor e o sangue dos homens! Suor e sangue será, finalmente, o seu preço. Terrível será o preço e apavorante o ajuste de contas.
Emprestar, e emprestar a juros! Realmente é ingratidão excessivamente descarada para que se possa desculpar.
Que tens tu para emprestar? Não é a tua própria vida um presente? Se Deus quisesse cobrar juros pelo mais ínfimo dos presentes que te deu, ondes irias buscar com que pagá-los?
Não e este mundo um tesouro comum onde cada coisa e cada homem deposita tudo que possui para a manutenção de todos?
Por acaso a calhandra te empresta o seu canto, ou a fonte a água que dela jorra?
E o carvalho, empresta a sua sombra, ou a tamareira suas dulcíssimas tâmaras?
Empresta o carneiro a sua lã a vaca o seu leite... a juros?
E as nuvens, vendem-te a chuva, ou o sol o seu calor e a sua luz?
Que seria de tua vida sem estas coisas e milhares de outras? E qual de entre vós pode dizer que depositou o máximo e quem depositou o mínimo na tesouraria do mundo?
Podes tu, Shamadam, calcular quais foram as contribuições de Rustidion para a tesouraria da Arca? Empresta-lhes as suas próprias contribuições - talvez uma parte ínfima das mesmas, - cobra-lhe juros esconchantes, e agora queres fazê-lo apodrecer na prisão?
Qual o juro que exiges de Rustidion? Não vês como o teu empréstimo lhe foi lucrativo?! Que melhor pagamento queres do que um filho morto, uma vaca morta e uma esposa paralítica?! Que melhores juros exigir do que os andrajos que lhe cobrem o corpo curvado?!
Esfrega os olhos Shamadam. Desperta, antes que te seja exigido, também, que pagues as tuas dívidas com juros e, não o podendo fazer, sejas mandado apodrecer na prisão.
O mesmo digo a todos vós, companheiros. Esfregai os vossos olhos e despertai.
Dai quando puderdes e tudo que puderdes. Mas jamais empresteis, senão tudo quanto tiverdes, inclusive a vossa vida, se tornará um empréstimo, e um empréstimo vencido. Sereis considerados insolventes e lançados à prisão.
Naronda: O Mestre olhou então novamente para o documento que tinha nas mãos e o fez em pedaços e lançou ao vento. Voltando-se para Himbal, que era o tesoureiro, disse-lhe:
Mirdad:
Dá a Rustidion o necessário para comprar duas vacas e cuidar de sua esposa e de si próprio até o fim de seus dias.
E tu, Rustidion, vai em paz. Tua dívida está resgatada. Toma cuidado para jamais te tornares credor, pois o débito de quem empresta é muito mais pesado do que o daquele que toma espreitado.


O livro de Mirdad,Mikhail Naimy
(1889 - 1988)

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